sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Teses sobre a Refundação - Apresentação

“Um homem inteligente certa vez deu-se a pensar que os homens que submergiam na água, se afogavam simplesmente porque se deixavam levar pela idéia da gravidade. Tão logo retirasse essa idéia da cabeça, considerando-a por exemplo como uma idéia nascida da superstição, como uma idéia religiosa, ficaria imune ao perigo de afogar-se. Este homem passou a vida lutando contra a ilusão da gravidade, cujas conseqüências nocivas todas as estatísticas apontavam novas e abundantes provas. Este homem inteligente era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães.”

( K. Marx e F. Engels, em “La Ideologia Alemana”, Buenos Aires, Ediciones Pueblos Unidos, 1973, p. 11 e 12 )
 
A atual luta teórica entre os comunistas revolucionários brasileiros, iniciada na década de 60, e retomada atualmente, com o desaparecimento do campo socialista do leste e da URSS, tem parodiado, em grande escala, a luta teórica travada pelos jovens hegelianos de esquerda, contra o sistema de Hegel, na Alemanha, no século passado (XIX). Em primeiro lugar, porque toda a luta se condensa em torno de uma única questão: “Que fazer” para solucionar a crise em que está mergulhado o MCB? Situando melhor o problema, talvez fosse mais acertado dizer: “Que Refazer?” Em segundo lugar, porque todas as idéias revolucionárias sobre esta questão implicam o conhecimento profundo das suas raízes, ou o cerne do problema a ser resolvido. E por último, porque tratando-se de um problema que também se apresenta no plano interncional, seria possível solucioná-lo no âmbito nacional?
Muito se tem dito e escrito sobre o tema, tornando-o cada vez mais candente para a luta de classes e a revolução no Brasil. A classe operária e as massas exploradas e oprimidas pelo capitalismo clamam por uma solução, mas toda tentativa de solucionar o dilema, até agora, somente tem acentuado o quadro de crise do MCB. Cresce o processo de divisão e o caos teórico domina a prática revolucionária, tornando-a cada vez mais afastada de um real trabalho revolucionário; o sofrimento das massas exploradas parece sem solução e a burguesia tripudia sobre a debilidade destes esforços revolucionários, tão abnegados e “idealistas”, no país.
Mas, qual é a causa de tudo isto? Por que todos os esforços organizativos revolucionários dos mais distintos agrupamentos, de um momento para o outro, esvaem-se como um castelo de areia, soçobrando à fadiga e à desilusão com o processo revolucionário e o marxismo? Por que o marxismo torna-se cada vez mais afastado das massas operárias, enquanto teorias obscurantistas e alienígenas, escritas em linguagem arcaica e incompreensível, são assimiladas por multidãos de trabalhadores, constituindo verdadeiros exércitos de fanáticos por todo o país? Ao nosso ver aí está a raiz do problema a ser respondido e, antes disso, não se poderá proceder a qualquer esforço revolucionário e organizativo no Brasil.
Luiz Carlos Prestes, o mais sábio e prático comunista revolucionário brasileiro, após seu desligamento do Partido Comunista, do qual foi o Secretário Geral durante mais de 4 décadas seguidas, levantou este problema pela primeira vez, abrindo um caminho para que os revolucionários brasileiros avançassem na formulação de uma estratégia para a revolução brasileira, que superasse as limitações e o maniqueísmo do debate até então desenvolvido. Ao analisar o processo de luta interna do Partido Comunista, entre 57 e 61, que resultaria na dissidência que formaria o PCdoB, afirmava:

(...) Em 58 fizemos autocrítica por causa do XX Congresso e mais uma vez criticamos a prática sem tocar a questão da estratégia. Nós confundimos a possibilidade da via pacífica ao socialismo com o caminho pacífico. E caímos na passividade. O documento foi criticado e melhorado no V Congresso, mas continuou marcado por muitas ilusões sobre o capitalismo, refletindo nossa incompreensão total da realidade brasileira. Na ânsia de criticar os erros de esquerda, acabamos caindo, entre 56 e 60, em posições liberais e direitistas. Não era novidade para nós o esquecimento da questão estratégica. Desde 28, nossa estratégia estava errada. Absorvemos as teses do VI Congresso da Internacional Comunista sem aplicá-las à nossa realidade. Eram teses para os países coloniais e semicoloniais, muito boas para aqueles países, mas que não podiam ser aplicadas na América Latina, onde já se tinha independência política desde o princípio do século passado. Esses erros refletem o nosso atraso cultural. Há 60 anos que se estuda marxismo nas universidades. No Brasil, se o sujeito tem um livro marxista, está arriscado a ser preso, torturado e até assassinado. Qual é a causa disso? A burguesia industrial brasileira apareceu no fim do século, já na época do imperialismo, numa época em que o capitalismo chegava ao imperialismo. Explicando melhor: a burguesia brasileira nasceu subordinada ao imperialismo. Nosso capitalismo é dependente, mas é capitalismo. E negar o capitalismo é um absurdo. Em 45, há documentos meus em que me refiro à revolução burguesa no Brasil. Comparávamos a situação do Brasil naquela época ao czarismo na Rússia de 1905. Ora, isso era uma análise completamente falsa. A Rússia czarista era uma sociedade autocrática. Nós, na verdade, apenas repetíamos as palavras de Lênin nas "Duas Táticas da Social-Democracia", que eram justas, mas lá para a Rússia de 1905. Aqui, não eram aplicáveis à realidade. Há documentos meus em que dizia ser preciso acabar com a dominação imperialista e com o latifúndio, a fim de abrir caminho para o capitalismo. O problema é que o capitalismo já estava se desenvolvendo ali, ao nosso lado, sem que víssemos.”
(Dênis de Moraes e Francisco Viana, “Prestes: Lutas e Autocríticas”, Petrópolis, Editora Vozes, 1982, 2º Edição, p. 151 e 152)
Prestes mostrou precisamente que o problema central da revolução brasileira não é um problema meramente de tática, mas sobretudo, de estratégia. Deriva, por um lado, do atraso cultural do país, que impediu o domínio da ciência marxista-leninista pelos revolucionários; e por outro, do desconhecimento da realidade brasileira, que levou à execução de uma estratégia errada para o país. Por isso, as grandes discussões teóricas e filosóficas e novas formulações estratégicas, que buscavam contestar num ou noutro aspecto a estratégia do Partido, sem contestar a sua totalidade, foram refutadas na prática. A grande maioria dos agrupamentos da considerada “nova esquerda”1, saídos das fileiras do Partido para a luta armada, nas décadas de 60 e 70, por não efetuarem uma ruptura com as suas concepções estratégicas, desempenharam o papel de ovelhas que se faziam passar por lobos, foram amplamente utilizados pela burguesia e o seu aparelho de repressão. Os setores que ficam no Partido tornam-se prisioneiros desta estratégia, mesmo depois de seu completo esfacelamento. Assim forma-se um quadro em que —como dizia Lenine— “sem teoria revolucionária, não há sequer movimento revolucionário”2, o irritado desconcerto leva ao surgimento de “homens inteligentes”,como aquele descrito por Marx e Engels no prólogo da Ideologia Alemã. Eles pensam que a agressividade das palavras anula a postura direitista e conservadora junto às massas; que a violência da ação anula o objetivo utópico e reacionário e que o idealismo moral anula a inocência, que conduz sempre às armadilhas da classe dominante e seus aparelhos repressivos e não compreendem que - como dizia Prestes — “não há vento favorável para quem não sabe a que porto se dirige”3.
Vinte anos se passaram e a realidade continua a demonstrar, inequivocamente, que a questão levantada por Prestes não é mera superstição, mas uma contradição concreta, a lei da gravidade do movimento revolucionário brasileiro que não foi solucionada e, até o momento, é a causa principal de seu completo esfacelamento. A cada novo fracionamento dos revolucionários, que teimam em desempenhar o papel daquele “homem inteligente”, o MCB (Movimento Comunista Brasileiro) é compelido a se posicionar frente ao problema da estratégia. Assim a atual crise dos comunistas no Brasil transformou-se, aparentemente, num beco sem saída: pois sem uma estratégia revolucionária não é possível se erguer um movimento revolucionário e, sobretudo o Partido, e sem a organização dos quadros revolucionários, é impossível o domínio da teoria marxista-leninista, a compreensão da realidade brasileira, logo, uma estratégia revolucionária.
Mas não há problema sem solução. E nestas circunstâncias, funciona uma outra lei da “gravidade”, a dialética do processo histórico deixada por Marx :
Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhes substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso, que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer.”
(Karl Marx, “Contribuição para a Crítica da Economia Política”, Editorial Estampa, Lisboa, 1977, p. 29)
O novo processo de fracionamento vivido pelo Movimento Comunista Brasileiro, a partir da década de 80 e que continua a se desenvolver durante toda a década de 90, levou ao surgimento de vários agrupamentos revolucionários e círculos marxistas que passam a efetuar uma espécie de crítica da crítica. Estes tão somente buscam contestar os equívocos de estratégia que levaram ao esfacelamento do Partido Comunista, mas também, este fenômeno nas organizações constituídas no período de luta armada. Muitos agrupamentos repetem a experiência já percorrida por outros, alguns se pretendem “Partidos” ou se rotulam como tal, outros, embora não se rotulem, agem como tal. E com isto, surge uma nova base revolucionária, da qual poderá fluir os quadros comunistas necessários para o trabalho de Refundação do Partido Comunista no Brasil. Mas para que isto tenha uma conseqüência prática é necessário que estes novos agrupamentos não se deixem atrair pelo papel daquele “homem inteligente”, constituam um processo comum de crítica e autocrítica, de estudo do marxismo e elaboração de uma estratégia revolucionária, e unindo-se numa prática comum, que supere o sectarismo, as jactâncias filosóficas e o espírito de círculo pelo espírito de Partido.
A nossa Organização é um destes agrupamentos revolucionários que ao longo de 17 anos tem trabalhado, incansavelmente, na construção desta nova base revolucionáriaMarxista-Leninista, para que se possa Refundar o Partido Comunista. Sua ruptura com as concepções estratégicas da “dita nova esquerda” se deu na medida em que todos os esforços teórico, organizativo e tático, balizadores do processo de ruptura dos revolucionários com as concepções estratégicas do PCB, na década de 60, passam a ser sistematicamente renegadas pelas suas principais lideranças e formuladores ou propositalmente distorcidos e “adaptados” às novas circunstâncias políticas do país — o retorno à “democracia burguesa”4— caindo no mais desavergonhado chauvinismo pelo revisionismo e o reformismo (esquerdista e de direita). Identificamos este processo como um novo caminho de retorno ao “pântano”* teórico (as concepções estratégicas do PCB), através de um novo rótulo: o Partido dos Trabalhadores — PT. Rejeitamos também o caminho da capitulação seguido por aqueles setores que, sem o menor escrúpulo, promoveram cisões em seus agrupamentos e retornaram diretamente ao pântano (o próprio PCB), para ajudar a DNP (Direção Nacional Provisória) a conduzi-lo ao liquidacionismo. De certa forma, muitas vezes nos imaginávamos no papel daquele “homem inteligente”,descrito por Marx e Engels, lutando com as idéias contra a lei da gravidade, isto é, tentando “quebrar o fundo da garrafa” com as idéias, mas a aproximação de nosso agrupamento com Luiz Carlos Prestes viria demonstrar que a nossa situação era o inverso.
Deste modo, a nossa Organização tem desenvolvido uma experiência inédita dentro do processo revolucionário brasileiro: trata-se de uma organização operária, construída por operários, armados com a ciência do proletariado — o Marxismo-Leninismo. Ela ultrapassou as portas do inferno (a luta econômica) e se projetou no céu da luta de classes do proletariado brasileiro e latino-americano. Adquiriu o respeito, a simpatia e a colaboração de vários intelectuais de prestígio e hoje polariza a opinião de parte significativa do movimento revolucionário do país. Se a sua experiência se soma à experiência de outros agrupamentos, mais que se constituir uma nova base revolucionária, ela refundará, de fato e de direito, oPartido Comunista no Brasil. Portanto, é necessário compreender que o acúmulo e a experiência isolada, não são suficientes para conquistar seu objetivo e, neste sentido, tornou-se imprescindível aos comunistas revolucionários, necessário à revolução e exigido, a olhos vistos, pela classe operária, que a nossa estratégia reflita uma proposta mais avançada, para uma reflexão coletiva de todos os agrupamentos revolucionários dispostos por sua consciência e livre vontade a um processo de unidade prática e teórica no Congresso de Refundação do Partido Comunista.

Notas
(1) SÁ, J. Ferreira e REIS FILHO, D. A. (org.) Imagens da Revolução (documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971). Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985. p. 7.
(2) LENINE, V.I. Que fazer. In: Obras Escolhidas, tomo I. Lisboa/Moscou, Ed. Avante/ Ed. Progresso, 1977. pp. 96-97.
(3) PRESTES, L. C. Jornal INVERTA, Rio de Janeiro, nº 9, Março de 1993, p. 12.
(4) IVAN, P. As razões de nosso desligamento do PCdoB (Ala Vermelha). In: Organização e Partido, caderno III, Rio de Janeiro, ALP, 1983.

(*) Refiro-me à fábula do “Tonel vazio”, de Krilov, citada por Lenine no “Que Fazer”: “Pequeno grupo compacto, seguimos por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados de inimigos por todos os lados e temos de marchar quase sempre debaixo do seu fogo. Unimo-nos em virtude de uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano vizinho, cujos habitantes, desde o início, nos censuram por nos termos separados num grupo à parte e por termos escolhido o caminho da luta e não o da conciliação. E eis que alguns de nós começam a gritar: “vamos para o pântano!” E quando procuramos envergonhá-los replicam : “Que gente tão atrasada sois! Como é que não tendes vergonha de nos negar a liberdade de vos convidar a seguir um caminho melhor!” Oh! sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, mas também de ir para onde melhor vos parecer, até para o pântano; até pensamos que vosso verdadeiro lugar é precisamente o pântano e estamos dispostos a ajudar-vos, na medida das nossas forças, a mudar-vos para lá. mas nesse caso largai-nos a mão, não vos agarreis a nós e não mancheis a grande palavra liberdade, porque nós também somos “livres” para ir para onde melhor nos parecer, livres para combater não só o pântano como aqueles que se desviam para o pântano! (ob. cit. p. 86).


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Teses "Que Refundar?" (pdf)

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